Na Rota das Caravanas
Eu não tinha bicicleta e o Sérgio não tinha parceiro. Menos com menos dá mais, não é? Eu deveria saber, pois tinha sido aceite no Instituto Superior de Engenharia do Porto. Mas, para espanto dos meus pais, abandonei o curso logo no primeiro semestre, movido pela curiosidade do que nunca tinha visto, desejoso de explorar o nosso planeta.
O objetivo que ele propôs era tão estimulante quanto absurdo: partiríamos de Ceuta, pedalando pela antiga rota das caravanas rumo a sul, para depois atravessar cerca de 300 km do deserto do Sahara até Tamgroute. Por fim, antes de chegar a Marraquexe, cruzaríamos as montanhas do Alto Atlas, culminando na ascensão ao Jbel Toubkal, a 4.167 metros de altitude.
Aceitei imediatamente, sem pensar duas vezes. A ignorância, de facto, é uma bênção, e a juventude, uma força imparável. O único problema era que eu não percebia rigorosamente nada de bicicletas e, menos ainda, de desertos. O Sérgio, por outro lado, já tinha tentado esta travessia antes e desistira logo no início. Sabia alguma coisa sobre bicicletas, mas de desertos percebia tanto quanto eu.
"Paro para vomitar. Temos menos de um litro de água para os dois. Não sabemos onde estamos. Ninguém sabe."
Já em Merzouga, às portas do deserto, um francês ao volante de um jipe de reconhecimento do Paris-Dakar olhava para nós incrédulo, enquanto o Sérgio lhe explicava o plano. Eu continuava a carregar as bicicletas com água, ouvindo vagamente a conversa: «Vamos reabastecer nos poços que encontrarmos nos oásis». Talvez fosse o cansaço acumulado das últimas semanas ou apenas uma fé inexplicável, mas o meu cérebro não conseguia processar o absurdo daquela frase. Mas, afinal, o que é que eu sabia? Nunca tinha visto um deserto.
Féz tinha ficado para trás, assim como a travessia do Médio Atlas. Eu estava extasiado, incrédulo, fascinado por estar ali. As pessoas, a comida, os cheiros... tudo era novidade, exótico, tudo me deslumbrava.
De tão inebriado com o que estava a viver e com a minha própria inexperiência, nem sequer questionei que o nosso mapa Michelin, que nos tinha guiado até ali, não passava de uma folha coberta por uma mancha bege, sem qualquer detalhe útil sobre o deserto que iríamos enfrentar.
A pista de terra rapidamente se diluiu numa amálgama de pó, pedras e terra solta. Passámos a navegar por intuição, seguindo apenas a agulha da bússola, sempre para sul. O problema é que as aldeias no deserto não abundam, e bastava um grau de desvio para significar a diferença entre encontrá-las ou passar vários quilómetros ao lado sem sequer as avistar.
Parámos. Olhei para o relógio; era quase meio-dia. Pensei nas pessoas que conhecia, imaginando o que estariam a fazer naquele preciso instante. Ainda sentado na bicicleta, comecei a vomitar em seco. Já não havia nada para expelir. A travessia do Sahara parecia-me cada vez mais uma miragem. Percorri o horizonte à procura de algo, mas só via terra e pedra. Nem sequer as dunas, que marcavam a orla do erg onde supostamente existiam aldeias, se conseguiam vislumbrar. O Sérgio mantinha-se sereno.
"Voltamos para trás…", sugeri, num esforço inútil para o desestabilizar.
"As dunas estão ali", respondeu, apontando vagamente para o horizonte.
Percebi que seria mais fácil continuar a arrastar-me pelo deserto do que convencer o Sérgio a regressar.
Passadas algumas horas, vislumbrámos algo ao longe. Não eram aldeias nem dunas; era uma coluna de pó que avançava rapidamente na nossa direção. Pouco depois surgiu um Land Rover Defender, conduzido por dois marroquinos que regressavam da Argélia carregados de whisky contrabandeado. A expressão nos seus rostos dizia tudo. Amarrámos as bicicletas ao tejadilho e seguimos com eles até casa.
Durante três dias, vivemos como berberes no deserto, embalados por um tempo que parecia alongar-se com o horizonte. O dia começava cedo, com pão achatado e chá de menta tão doce que parecia açúcar líquido. O calor da tarde suspendia tudo. Os homens reuniam-se à sombra, trocando histórias, partilhando uma refeição e, sorrateiramente, algum álcool. À noite, o deserto tornava-se infinito e silencioso. Estes dias pareceram uma eternidade, como se o mundo lá fora tivesse deixado de existir. Não havia muito mais a fazer, além de comer, descansar e esperar que a viagem recomeçasse.
Ainda hoje não percebo como tivemos tanta sorte. Não sei onde estávamos, mas naquele vazio interminável, encontrar alguém parecia impossível. Em retrospectiva, aquele encontro parece-me um pequeno milagre.

A viagem continuou rumo ao vale do Dades, serpenteando por entre aldeias de adobe que se confundiam com as encostas ocres. As estradas, ora estreitas e irregulares, ora abertas em longas retas poeirentas, alternavam entre trechos de cascalho e gargantas profundas escavadas pela água.
A certa altura, já no meio de um planalto árido e infinito, o Sérgio encostou a bicicleta junto a uma banca improvisada de fósseis. O vendedor, com as mãos marcadas pelo tempo, apontou para uma mó de pedra, gasta por décadas a moer cereais. Enquanto eu bebia água quente da garrafa, ele negociava em gestos frenéticos e longos silêncios. No fim, comprou a mó. Pesada e inútil. Enfiou-a no alforje com o ânimo de quem carrega um tesouro. Nunca lhe perguntei porquê e talvez tenha sido melhor assim.

As poucas pessoas que arriscavam algumas palavras em francês rudimentar pareciam não acreditar no que ouviam: quem, no seu perfeito juízo, tentaria chegar ao Lago Ifni de bicicleta e, depois, ao cume do Toubkal? Exaustos, após quase um mês de viagem, decidimos desistir. Conseguimos uma boleia até uma vila e lá um táxi para Marraquexe. Percebi, então, que as verdadeiras aventuras quase nunca correm como planeado, e talvez seja assim que deve ser.
Texto e fotos: Tiago Costa
Anos mais tarde, o Tiago seria um dos fundadores da Nomad, e esta jornada inspirou o itinerário para a viagem "Descoberta de Marrocos" que se mantém até hoje na oferta de viagens da Nomad.