Pranav Muni e a busca pela liberdade

Pranav Muni, um saddhu que fez um voto de silêncio há mais de seis anos, deixou-nos gradualmente entrar no seu mundo, deu-nos acesso à sua história, aos seus momentos mais íntimos, e partilhou connosco as suas motivações e aspirações mais profundas.

uma história da Dânia Rodrigues com fotografia do Eduardo Leal

Os saddhus, ascetas filósofos indianos, são indivíduos que se desiludiram com a sociedade materialista, e embarcaram numa busca espiritual para se encontrarem a eles próprios, para compreenderem o significado da sua existência. Para o fazer, precisam de abandonar tudo aquilo que possuem, todos os laços que os ligam às pessoas que amam e à sua existência, e celebrar o seu próprio funeral. A partir daí, embarcam num percurso cheio das provações mais extremas, com o único propósito de encontrarem Deus, de se fundirem com o Divino. No Kumbha Mela de Prayagraj, na maior concentração humana jamais registada na história, tivemos a oportunidade de entrar em confidência com um destes extraordinários seres.

Abril de 2016, margens do rio Kshipra. Após várias horas a caminhar no meio de uma densa multidão, sob um sol abrasador, tive o primeiro vislumbre de um ser que me parecia vindo de uma outra dimensão. Completamente nu, coberto de cinzas, com um enorme turbante feito de rastas, esta personagem encontrava-se envolta por uma nuvem de fumo, proveniente do xilum de marijuana que estava a fumar. Nos dias que se seguiram, senti-me como recém-chegada a um novo planeta. Dezenas de milhares destes naga saddhus, seres que renunciaram a tudo aquilo que possuíam, tinham abandonado os seus refúgios nas partes mais inóspitas da Índia para se concentrarem nas margens deste rio sagrado. 

Tal como muitos outros crentes, este ascetas tinham viajado em peregrinação até Ujjain, uma das mais veneradas cidades do hinduísmo, por ocasião do Simhastha Mela. Os hindus acreditam que, em tempos imemoriais, no decurso de uma luta entre deuses e demónios por um pote de amrit, o néctar da imortalidade, quatro gotas caíram sobre a terra, em Nasik, Haridwar, Prayagray e Ujjain. E que, num ciclo que dura doze anos para cada uma destas cidades, as águas do rio convertem-se momentaneamente no miraculoso néctar. O poder da devoção conduz assim milhões de pessoas a dirigir-se para as localizações sagradas quando a configuração cósmica é adequada, aguardando o momento mais auspicioso para se banharem no rio. 


Totalmente deslumbrada, assisti a longas procissões destes renunciantes, vi-os a praticar as mais duras austeridades, como mutilar os próprios genitais, ou permanecer com um braço levantado durante anos.


Passei horas a perscrutar os seus olhares, com a inquietante certeza que alguns haviam percebido algo sobre mim mesma que eu ainda não tinha sido capaz de atingir. E desde esse momento, uma questão começou a assombrar-me. O que terá levado todas estas pessoas a abdicar das suas seguranças, as suas certezas, para abraçar uma vida de provações tão extremas? E o que teriam encontrado no decurso da sua busca? 

Esta inquietação levou-me três anos mais tarde ao epicentro da maior concentração humana da história: o Kumbha Mela de Prayagraj. Prayagraj é outro dos locais onde caiu a gota do néctar, mas os hindus consideram esta localidade particularmente auspiciosa por se encontrar no ponto de encontro entre os rios Ganges, Yamuna e o mítico Saraswati. Assim, 120 milhões de pessoas, no arco de dois meses, visitam esta cidade com o intuito de se banhar nas águas no momento mais apropriado.

Desta vez, acompanhou-me o Eduardo Leal, um fotógrafo documental que tinha a ambição de transcender as imagens estereotipadas deste grande evento. Sabíamos que, para poder alcançar os nossos objetivos, não seria possível ficar confortavelmente instalados num hotel e fazer algumas incursões diárias nos acampamentos. Teríamos que viver com os naga saddhus nas suas tendas, depender da sua generosidade para nos nutrirmos e abrigarmos, enfrentar o frio glacial e as condições de baixa salubridade.

Durante as semanas que se seguiram, testámos os limites do nosso corpo, à medida que estes  gradualmente começavam a sucumbir. Mas nada disto foi comparável ao enorme desafio mental que tivemos que ultrapassar. Cada dia, éramos bombardeados com uma quantidade de informação visual, sonora e olfativa absolutamente esmagadora. Tínhamos a sensação de ser demasiado pequenos para conseguir captar a imensidão daquilo que nos rodeava. Convivíamos diariamente com renunciantes transexuais que pediam esmola de tenda em tenda, com ascetas completamente nus que haviam feito o voto de nunca mais se voltar a sentar ou deitar, com comitivas de saddhus músicos itinerantes; tudo isto num contexto feito de dezenas de milhões de peregrinos que vagueavam com os seus pertences à cabeça, saltimbancos, encantadores de serpentes, demonstradores de artes marciais e outras personagens saídas diretamente do nosso imaginário das Mil e Uma Noites.

No meio deste deslumbrante e desnorteante labirinto humano, eu e o Eduardo decidimos que precisávamos de encontrar um fio condutor. Tínhamos que encontrar um renunciante no qual nos pudéssemos concentrar, através do qual pudéssemos contar tudo aquilo que estávamos a viver, alguém que nos pudesse transmitir na sua essência o que significava  ser um asceta. Dedicámos então as nossas últimas energias a tentar escolher um saddhu. Mal poderíamos imaginar que, no final, seria um saddhu a escolher-nos a nós.Ao fim de uma semana de deambulações, entramos num acampamento à procura de um asceta que conheceramos uns dias antes, que nos tinha parecido particularmente prometedor. Dirigimo-nos à tenda que nos indicaram, e sentámo-nos respeitosamente em redor do fogo sagrado a bebericar a enésima chávena de chai do dia.

Aproximou-se de nós um homem com um saiote e turbante preto, totalmente coberto de cinzas, um sorriso desarmante e um olhar bondoso. Através de sinais, comunicou-nos que tinha feito um voto de silêncio e que havia seis anos que não pronunciava uma palavra. Nos seus modos pousados e no ambiente que nos rodeava, encontrámos um oásis de serenidade no turbilhão de eventos e emoções com que nos bombardeava constantemente o Kumbha Mela. Apesar de não ser este o anfitrião que inicialmente procurávamos, confiámos no nosso instinto e aceitámos o seu convite para jantar e dormir na sua tenda. E cedo percebemos que a nossa busca pela personagem certa tinha finalmente terminado.

Pranav Muni, o homem que fizera um voto de silêncio seis anos antes, revelou-se o ser mais comunicativo, mais complexo e mais fascinante que conseguíramos encontrar.

Gradualmente, desenvolveu-se entre nós uma relação bastante peculiar. Nós, ávidos de curiosidade, vivíamos intensamente todos os seus atos devocionais, revelações pessoais e considerações metafísicas. E Pranav, parece-me, viu em nós pessoas que poderiam escutar e talvez até compreender a sua busca sem compromissos pela liberdade. O asceta encontrava-se rodeado de uma pequena comitiva que o seguia e reverenciava incondicionalmente. Mas nenhum deles conseguia dar-lhe a empatia que ele tanto desejava e que via agora manifestada nas nossas pessoas.

Fomos adotados por ele, e cada dia, cada momento na sua presença correspondia à conquista de um pedaço da sua intimidade. Para se poder indagar sobre a vida de um renunciante, é preciso tempo. Muito tempo.

'Um saddhu não tem passado', repetem invariavelmente os ascetas sempre que tentamos sondar um pouco sobre a sua história. Isto porque a cerimónia de iniciação de um saddhu corresponde ao funeral da sua vida precedente. O asceta renuncia não só às suas posses, mas também à sua identidade, a todos os laços que o prendiam ao seu 'eu'. Mas, naturalmente, todos os renunciantes têm de facto um passado. Todos eles têm uma panóplia de fatores que os conduziu a fazer esta escolha tão extrema. Com tempo, começámos então a construir o mosaico da complexa personalidade de Pranav Muni, das suas motivações e aspirações.

Na sua vida anterior, Pranav Muni era conhecido como Sunil Kumar Mishra. Nascido numa família de brahmans, a casta dos sacerdotes, desde muito cedo mostrou uma orientação para a vida espiritual. Os pais, porém, temendo que renunciasse, pediram-lhe para se concentrar na escola. Aluno brilhante, terminou os estudos em Sânscrito na Universidade de Varanasi e foi tirar um doutoramento em Filosofia nos EUA. Personagem carismática com grandes dotes de orador, começou a reunir à sua volta um núcleo de entusiastas seguidores, que o veneravam como um semi-deus. Foi convidado a dar palestras em toda a América do Sul e a estabelecer-se num centro em Curazao, nas Caraíbas, onde conheceu uma vida de opulência, repleta de aventuras com mulheres. Mas um dia apercebeu-se que nada disto conseguira saciar a sua sede de divino. Todos aqueles anos passados como superstar religiosa não o tinham aproximado nem um milímetro da sua ambição mais profunda: conhecer a essência de Deus.

Decidiu então voltar para a Índia e começou a procurar um guru que o orientasse na sua busca espiritual. Mas não foi tarefa fácil. Sunil Kumar era um rebelde, um irreverente. Não se deixava fascinar pelo prestígio dos mestres espirituais, não tinha medo de fazer perguntas incómodas nem de apontar as incongruências dos ensinamentos e estilo de vida dos seus professores. Um aspeto que o perturbava particularmente era o isolamento dos renunciantes. A sua busca, pensava ele, não deveria passar pelo total abandono da sociedade. Se todos os seres, como predicam os intemporais ensinamentos do hinduísmo, são uma manifestação do Divino, então o verdadeiro desafio seria o de reconhecer e reverenciar esse aspeto em todos aqueles que o rodeiam.

Resolveu então tomar os seus votos de renunciante com a seita dos Udasin, um dos diversos ramos que constituem o movimento dos naga saddhus. Os Udasin nasceram formalmente no séc.XVI, seguindo os ensinamentos de Sri ChandraBhagwan. Reconhecido como um filósofo imbatível, formado nas conceituadas escolas de Kashmir, este pensador considerava fundamental a renúncia para poder transcender a condição humana e viver em comunhão com o Divino. Mas retinha também que uma parte fundamental desse processo era o serviço ao Outro. O saddhu tinha o dever social de partilhar imediatamente tudo aquilo que possuísse, porque qualquer favor prestado à humanidade era equivalente a servir diretamente Deus.

Após tomar os seus votos, deambulou durante uns meses e foi parar à orla de Shivdasha, uma pequena aldeia a alguns quilómetros de Varanasi. Acampou durante cerca de seis meses, aguardando o convite dos aldeões para se estabelecer dentro do povoado; desde então, tem vivido ali, na mais absoluta frugalidade, dedicando-se ao serviço dos que o rodeiam. Mas a dada altura, o asceta apercebeu-se que a sua renúncia ainda não era suficiente. Para além das boas ações, é necessário cultivar bons pensamentos e boas palavras.

Percebeu que a sua voz exterior nada fazia a não ser continuar a alimentar as suas ilusões sobre si mesmo. Abdicou então do uso da palavra; a partir daí, passou a cultivar o silêncio à sua volta, esperando que esta quietude apagasse a voz interior do seu ego, a única coisa que o impedia de reconhecer plenamente a sua própria essência divina. O momento culminante deste processo tornou-se a sua meditação diária. Ao mergulhar dentro de si mesmo, o asceta sente que transcende o espaço e o tempo.

A calma e serenidade que este saddhu irradiava fez-nos começar a encarar Pranav Muni como uma autêntica antítese do Kumbha Mela. Após o seu banho e meditação diária, o renunciante não fazia nenhuma das ocupações típicas dos outros ascetas. Raramente saía da sua tenda para visitar e confraternizar com outros saddhus. Quase nunca fumava xilums de marijuana, atividade que outros naga saddhus consideram determinante para atingir um estado de consciência transcendental. O seu mundo resumia-se a ele próprio e ao seu restrito grupo de seguidores, que contactava diariamente através do seu smartphone. Por isso, um dia perguntámos-lhe o que o tinha trazido ao grande festival. "Por um lado, a oportunidade de fazer boas ações a mais pessoas", respondeu. "Por outro, a carga espiritual deste lugar e desta ocasião auspiciosa, faz-me entrar quase instantaneamente em sintonia com o Divino".

“Quando medito, sinto-me eterno. Deixei de ter medo da morte. A morte não é nada: é como despir uma roupa e vestir uma nova. A morte é irrelevante”.

Durante o período em que seguimos Pranav Muni no Kumbha Mela e mais tarde no seu ashram em Shivdasha, em que o Eduardo se dedicou a documentar meticulosamente o seu quotidiano, um dos aspetos que mais nos tocou foi a absoluta humildade e generosidade do saddhu.  A antiga superstar espiritual servia as refeições com a maior compenetração a toda a sua comitiva e apenas comia no final, após certificar-se que ninguém precisava de mais nada. Evitava todo o tipo de ostentações e atenções com que vimos muitos saddhus ser reverenciados. Repartia imediatamente com todos os que rodeavam qualquer oferta de comida ou dinheiro que lhe fosse atribuída, e não descansava até resolver qualquer problema de qualquer pessoa que pertencesse ao seu séquito.

Outro aspecto tocante foi a sua honestidade. Pranav Muni nunca fingiu ser algo que não era, ou nunca tentou adoçar partes da sua história menos consonantes com a nossa ideia do que a espiritualidade deve ser. A sua relação com as mulheres, ou com as novas tecnologias, tinham sido e eram instrumentos que faziam parte do seu caminho. Pranav aceitava tudo isto sem remorsos nem julgamentos.

Conhecer Pranav Muni foi uma peça fundamental para começar a responder às minhas inquietações iniciais. Cada saddhu é motivado a renunciar ao mundo por motivos diversos. Há quem escape de famílias opressivas, de condições desfavoráveis, de problemas com a justiça. Mas há também pessoas que, tal como Pranav, vieram das esferas mais prósperas da sociedade e recusaram tudo aquilo que nós consideramos fundamental para uma existência digna e feliz, que catalogaram o dinheiro e a fama como armadilhas e sacrificaram tudo o que possuíam em nome da liberdade. Seria fácil categorizá-los como malucos. Mas, da perspetiva deles, os loucos somos nós. "Se verdadeiramente te ouvisses a ti própria, não estarias a seguir a vida de fazer dinheiro. Essa é a voz de outra pessoa, não a tua. Não passas de uma escrava", apontou-me Deepak Das, outro jovem saddhu que encontrámos.

Num mundo onde abundam as soluções fáceis, onde cada prateleira de supermercado oferece uma receita instantânea para todos os nossos dilemas existenciais, habituámo-nos a procurar a receita da nossa felicidade algures no exterior. Seguimos falsos profetas, livros de auto-ajuda, dietas desequilibradas, podcasts reveladores. Ao despir-se da sua materialidade, os saddhus, antigos deuses de um passado intemporal, procuram responder a inquietações universais que nos tocam a todos. E o que nos podem ensinar, ou recordar, é que a resposta se encontra dentro, não fora, de cada um de nós.