Os rostos de Bam

"O que mais gosto no Irão? São as pessoas.", revela Ricardo Alves, que nesta crónica relata a história de duas figuras incontornáveis do "seu" Irão.

Invariavelmente, sou confrontado com a pergunta: O que é que mais te apaixona no Irão? É uma pergunta difícil, à qual tendo a responder com o coração: o que mais gosto no Irão são as pessoas. As pessoas que tornam reais as histórias que lemos e ouvimos, que personificam as raízes da Pérsia e o futuro do Irão. Pessoas a quem hoje chamo família e que, a cada regresso, me recebem de braços abertos.

Pela minha experiência, a expectativa de quem visita o Irão é deslumbrar-se com a cultura. Há um peso histórico incrível, esmagador e omnipresente, que se manifesta das mais variadas formas: desde as ruínas de Persepolis, com 2500 anos, aos testemunhos da Revolução Islâmica de 1979, passando ainda pelas marcas dos acontecimentos mais recentes. Mas a história do Irão revela-se também na cultura que se expressa no quotidiano, presente nas ruas, na poesia, na música, na gastronomia, e, sobretudo, nas pessoas. Olhando-as de perto e escutando as suas histórias, percebemos que as suas origens tocam os quatro cantos do mundo. Os iranianos são a expressão mais evidente da riqueza cultural, da diversidade e da vasta e esmagadora história daquele território.

Dar a conhecer o Irão a um novo grupo de viajantes significa também dar-lhes a conhecer as “minhas” pessoas, criar momentos de intimidade, partilhar experiências e estreitar laços com aqueles que fazem do Irão um dos meus lugares favoritos no mundo. O Mohammad e o seu pai, Akbar, são apenas dois desses personagens irresistíveis, que generosamente nos dão a conhecer as suas histórias e nos oferecem os seus calorosos sorrisos.

Mohammad tem 35 anos. Nasceu e vive na histórica cidade de Bam, na província de Kerman. A sua mulher e os dois filhos estão em Shiraz, a 750 quilómetros ou a 8h30 de carro — números que Mohammad conhece de cor. A decisão de se estabelecer em Bam foi motivada pelo sustento económico da família. Mohammad vive com o pai, Akbar. Ex-professor de inglês com 80 anos, Akbar mantém o rádio ligado na BBC, todo o dia, para se manter informado. É uma fonte de cultura e uma figura magnética e muito carismática. A relação entre Mohammad e o seu pai é muito particular: há uma profunda admiração e contemplação, muitas estórias e muita cumplicidade entre eles.

Não tivesse o dia 26 de Dezembro de 2003 existido e, possivelmente, a história destes dois homens seria diferente. Até então, Bam vivia com prosperidade, muito graças à dinâmica do turismo. Mas, por volta das 5h30 da manhã, a cidade foi abalada por um violento tremor de terra que, segundo fontes oficiais, roubou a vida a mais de 25 mil pessoas. Confrontado com o caos e a destruição, Akbar perdeu a esperança de salvar o próprio filho e tentou ajudar quem podia à sua volta. Como que por milagre, Mohammad acabaria por ser encontrado com vida, depois de 4 horas sob os escombros. Já perdi a conta das vezes que ouvi Akbar a contar a sua versão dos acontecimentos e ainda assim, continua a ser difícil imaginar e transmitir aquilo que pai e filho devem ter passado.

Nas minhas visitas a Bam, com os grupos da Nomad, Akbar faz a gentileza de nos acompanhar, ao ritmo que as suas velhas pernas permitem, nas ruínas de Arg-e-Bam — a mais velha cidade de adobe do mundo. Ao longo do passeio, descreve, com uma graciosidade única, muitos dos episódios que ali se desenrolaram. 

Akbar vive aquele lugar com tanta paixão que a história se revela na emoção dos seus olhos brilhantes e no seu sorriso, tão característico e encantador. Inevitavelmente, nas palavras de Akbar, os relatos de Bam convergem com a sua história pessoal, provocando um momento introspectivo entre os viajantes. 

Nos dias que se seguem, o percurso leva-nos pelo interior da Pérsia profunda. Mohammad acompanha-nos nesta viagem e revela-nos a sua personalidade vibrante. Nunca me esqueço do privilégio que é privar com ele e ouvir, a viva voz, as suas aventuras e desventuras. Apesar das cicatrizes (e parafusos!) que o terramoto lhe deixou no corpo, é, provavelmente, a pessoa mais divertida e bem disposta que já conheci.

Mohammad e o seu pai, Akbar deixam saudades a cada partida e ficam na memória de todos aqueles que os conhecem. Dois rostos de Bam. Dois homens cujas vidas se confundem com a história do lugar a que chamam casa. Dois homens que transportam, como tantos outros, o legado de um país onde antiguidade é sinónimo de identidade. E que me lembram que o “meu” Irão, é o Irão das pessoas.

Ficha Técnica

Texto Ricardo Alves
Fotos Ricardo Alves, Paula Acúrcio, Pedro Rodrigues
Edição Marta Macedo