Heróis com uma causa

Os beduínos do Vale da Lua e o nomadismo contemporâneo

Esta história não é uma história. Não dá conta do que é exótico, estranho ou raro. Não se foca em episódios, mas sim em rotinas e no seu valor. É uma reflexão sobre contemporaneidade e tradição. Uma divagação sobre rituais mundanos, porém solenes, simples, mas cheios de significado. Esta narrativa discorre sobre o quotidiano dos beduínos no deserto, perscrutando as suas vivências nómadas em dias modernos.

O cenário é Wadi Rum, no Sul da Jordânia. A paisagem é vasta e parece esculpida pelo vento, uma imensidão ocre que se alastra a perder de vista. Esta extensão desértica a que chamam de Vale da Lua é uma espécie de testemunho físico da evolução geológica da Terra: as suas formas, moldadas ao longo de milénios por fenómenos naturais, revelam a passagem do tempo e atestam o poder que a natureza tem de criar o belo. As rochas, volumes avermelhados repletos de inscrições rupestres, oferecem indícios sobre os primórdios da humanidade, registos das vicissitudes da condição humana que vão do banal ao heróico.

A história mais recente de Wadi Rum, essa, conta-se através dos beduínos - um povo nómada, de origem árabe, cuja existência esteve sempre ligada ao deserto e ao nomadismo. Hoje, os beduínos parecem viver numa espécie de limbo, que ora pende para a tradição ora se aproxima de uma (muito) relativa modernidade. Praticam um nomadismo contemporâneo, indecisos entre a valentia da vida no deserto e o conforto das aldeias que o rodeiam.

Na Jordânia do século XXI, viver no isolamento árido de Wadi Rum é uma escolha, e restam poucas famílias que optam por fazê-lo a tempo inteiro. Muitos preferem radicar-se nas aldeias e rumar ao deserto apenas quando as actividades do quotidiano assim o exigem. Ao contrário do que acontecia noutros tempos, os acessos são fáceis e as deslocações rápidas e confortáveis. As novas gerações sentem-se atraídas pela comodidade que as aldeias oferecem, mas há um legado ideológico que teima em perdurar. Os que ainda se aventuram a viver em permanência no deserto - geralmente os mais velhos - fazem-no por respeito às tradições centenárias do nomadismo beduíno.

"Hoje, os beduínos parecem viver numa espécie de limbo, que ora pende para a tradição ora se aproxima de uma (muito) relativa modernidade. Praticam um nomadismo contemporâneo, indecisos entre a valentia da vida no deserto e o conforto das aldeias que o rodeiam."

Em tempos idos, era a necessidade de procurar pasto para o gado que impelia as tribos beduínas a viver como nómadas. O gado, essencialmente composto por camelos e cabras, era o principal sustento destes povos - muitas vezes o único. Hoje, esta dependência não é tão significativa e a relação com o deserto, com o pastoreio de gado e com a vida nómada, é sobretudo afectiva. As migrações para o Wadi Rum têm cada vez menos a ver com questões práticas e cada vez mais a ver com a noção romântica de passagem de um testemunho cultural com o peso de milénios de História. Parece haver uma intenção consciente de manter vivos os preceitos beduínos e toda esta transmissão de valores parece imbuída de uma espécie de mística de super-herói do deserto.

A ideia quase-selvagem de marcar e proteger o território que entendem como seu é uma das motivações que continua a justificar o apelo dos beduínos pela vida nómada no Wadi Rum. Na cultura, permanecem rasgos de um comportamento tribal (hoje pacífico) que continuam a marcar o quotidiano deste povo. Reflexo de outros tempos, de uma era em que os beduínos eram guerreiros de punhal em riste e em que a noção territorial definia e diferenciava as várias tribos.

Zalabia, Zuwaydeh e Swalhiyeen são as três tribos que permanecem na região de Wadi Rum. Cada uma delas ocupa territórios delimitados, traçados por fronteiras aparentemente invisíveis, determinadas em acordos de cavalheiros-guerreiros, após séculos de relações inflamadas. Dentro de cada tribo, impera uma hierarquia rígida e, ao mesmo tempo, uma solidariedade comunitária. A família alargada é protegida acima de qualquer valor, e a expressão ‘a idade é um posto’ é interpretada com um rigor inabalável: os mais velhos são respeitados e tratados com reverência. É uma sociedade patriarcal em que o homem detém o papel primitivo de “cavaleiro-andante”, audaz e corajoso, capaz de providenciar sustento para toda a família.

O avô ensinou o pai, o pai ensina o filho, e o filho, já mais relutante, depois de conhecer os “luxos” da vida moderna, aprende agora sobre a vida nómada no Wadi Rum. Para ele, ir para o deserto é como ser jovem pupilo na alfaiataria de um antepassado, onde todos os tecidos ainda são cortados e cosidos demoradamente por mãos cansadas e calejadas. Conhecem as máquinas, mas a tradição corre-lhes nas veias. Ser beduíno é, no fundo, como herdar um negócio de família que resiste a modernizar-se. É uma questão de honra e um exercício de lealdade.

Por isso, no Verão escaldante da Jordânia, quando coincidentemente, os mais novos têm férias na escola, as famílias deixam as aldeias e rumam ao deserto, acompanhadas de cáfilas de camelos e rebanhos de cabras. Montam com perícia grandes tendas de pano, e cobrem a areia ardente com tapetes grossos que oferecem um conforto elementar àquele que será o quartel-general dos meses seguintes.

A hospitalidade é uma das características mais marcadas do povo beduíno e os seus acampamentos nómadas reflectem isso mesmo. As tendas são abertas ao centro e revelam uma modesta zona social, destinada a receber convidados. A respeitada figura do ancião cruza-se com a de anfitrião. Há uma fogueira sempre acesa para que se possa preparar um chá a quem por ali passa. As zonas mais resguardadas da tenda estão reservadas às mulheres, de quem se espera discrição e recato perante as visitas. O papel feminino é reduzido a tarefas domésticas. Às mulheres não é atribuído poder de decisão nem concedida qualquer autonomia. Apesar do crescente contacto com a sociedade moderna, este aspecto da cultura beduína continua vincadamente retrógrada.

"Ser beduíno é, no fundo, como herdar um negócio de família que resiste a modernizar-se. É uma questão de honra e um exercício de lealdade."

O ritmo do dia-a-dia no deserto é ditado pelo gado, que se dispersa bem para lá do horizonte do acampamento, em busca de terreno fértil para pastar. Os homens acompanham e cuidam dos animais, garantindo que estes não transgridem os limites territoriais da sua tribo. Como valerosos guerreiros, debaixo de um calor abrasador, percorrem a imensidão árida com a agilidade de quem faz a estrada de sempre, no caminho para casa. Navegam o Wadi Rum com uma destreza e precisão surpreendentes. Conhecem-no com a intimidade própria de amantes de toda a vida. Estudaram-no até ao mais ínfimo detalhe. Sabem-no de cor.

A tarefa do pastoreio é vagarosa por natureza, aparentemente desprovida de enormes desafios. Mas os beduínos fazem-na com orgulho, impondo obstáculos e cultivando rituais, transformando tarefas triviais em provas de aptidão e valor. Por opção, saem do acampamento sem mantimentos e entregam-se à auto-suficiência, como sempre fizeram os seus antepassados. Conhecem os lugares onde se escondem as preciosas fontes de água no deserto, recolhem plantas que crescem selvagens e reúnem os escassos galhos que vão encontrando no caminho para fazer uma fogueira e preparar um reconfortante chá, amassam o seu próprio pão e cozem-no debaixo da terra, abrigam-se do sol nas grutas formadas pelas rochas e quando a noite cai, dormem sob o manto estrelado que ilumina o céu.

Enquanto se entregam à vida nómada no deserto, os beduínos empregam em cada tarefa uma dedicação desmesurada. Como se cada acto fosse uma afirmação de identidade; como se, ao replicar os seus gestos, pudessem manter-se vivos os antepassados; como se, naquele intervalo de tempo vivessem uma vida emprestada, alheada do contexto da Jordânia do século XXI, em pleno crescimento económico e cultural. Uma vida atribuída pela herança genética, e que, mesmo não sendo escolhida, é amada.

A vida nómada dos beduínos no deserto de Wadi Rum é repleta de um romantismo intrépido que parece saído de uma película “holywoodesca” de outros tempos, que glorifica o dito super-herói do deserto. Dá até para imaginar o plano final deste épico datado: A pele morena reluz no fulgor dourado do crepúsculo e os olhos negros e misteriosos contemplam o horizonte, enquanto a keffiyeh vermelha e branca esvoaça elegantemente. O plano vai abrindo lentamente, para revelar a figura imponente deste cavaleiro do deserto, em contra-luz, de punhos cerrados apoiados na cintura, onde também se pode distinguir um cintilante punhal. Toca a banda sonora: homérica e triunfante. Rolam os créditos. Fim.

Fantasias cinematográficas à parte, a tradição beduína continua viva graças a estas famílias que insistem em honrar a cultura e transmiti-la aos seus descendentes, contrariando assim a tendência generalizada para a homogeneização dos costumes, consequência dos fenómenos de globalização da sociedade moderna.

"Enquanto se entregam à vida nómada no deserto, os beduínos empregam em cada tarefa uma dedicação desmesurada. (...) como se, naquele intervalo de tempo vivessem uma vida emprestada, alheada do contexto da Jordânia do século XXI, em pleno crescimento económico e cultural."

Consumo, conforto, comodismo. Assim se canta o hino da actualidade, apregoado em cada esquina por intermédio de avantajados logotipos que interrompem as fachadas clássicas para anunciar, em letras garrafais de cores garridas, que ali (também ali) podemos beber o mesmo café que se bebe nos quatro cantos do mundo, podemos apreciar a sanduíche processada mais vendida do universo ou comprar o uniforme que vimos vestido num qualquer desconhecido, numa qualquer rede social, através de um qualquer smartphone fabricado na China. É evidente que há vantagens neste acesso globalizado aos bens, aos serviços e à informação. É claro que esta democratização é um processo - em certa medida - desejável. É lógico que nem todo o consumo é negativo, que a procura de conforto é legítima e que a evolução sugere que a tecnologia nos proporcione melhores condições de vida. Mas caminhamos para um perigoso abismo em que a identidade das pessoas e dos lugares se dilui em maneirismos universais. E não é sempre a diversidade de culturas e a sua materialização em espaços físicos com características singulares que provoca fascínio? Do ponto de vista humano, é tão poético o que nos aproxima como o que nos distingue. Na cultura, porém, a beleza está na autenticidade. É aí que reside o valor da tradição: na capacidade de fazer perdurar o que é único, enriquecendo a cultura e preservando a memória.

No deserto de Wadi Rum não há logotipos ou fast-food. As tarefas diárias são pequenas conquistas que celebram um modo de vida depurado do supérfluo, despido de artifícios, reduzido ao essencial. Um modo de vida, acima de tudo, genuíno.

Ainda que se possam questionar certos aspectos da cultura beduína, que pouco ou nada contribuem para o paradigma de progresso social, que à luz da visão contemporânea e ocidental, é desejável, é impossível negar o seu precioso contributo para a preservação desta identidade cultural. É impossível não reconhecer mérito a estes homens e mulheres que, durante um certo número de meses por ano, recusam o (relativo) conforto das aldeias, abandonam as suas casas, e entregam-se às dificuldades da vida nómada do deserto.

O que é, se não amor, esta dedicação ao nomadismo beduíno? É amor, sim. À tradição. É um daqueles amores de Verão, fugazes mas impossíveis de esquecer. Porque quando termina a estação quente, desmontam-se as tendas, reúne-se o gado e regressa-se às aldeias. Para se voltar a repetir tudo outra vez no Verão seguinte.

Ficha Técnica

Texto Marta Macedo
Edição Inês Catarina Pinto
Fotografia Pedro Gonçalves