A Líbia depois de Khadafi

O líder Nomad Carlos Carneiro estava a dar a volta a África com o pai numa Renault 4L, mas para terminar a sua viagem teria de passar pela Líbia recém libertada.

Há muito que tinha um abraço guardado para o meu pai – seria apenas no final da aventura. Mas a comoção foi mais forte do que nós: abraçámo-nos, logo ali, pela primeira vez em 11 meses. Ou pensando melhor, pela primeira vez na vida abracei o meu pai.

Era um abraço estranho. Íamos entrar num país ainda mergulhado no caos e onde, no último ano, haviam morrido 50 mil pessoas numa sangrenta guerra civil. Para nós a maior alegria era pensar que tínhamos arrancado para a viagem no início da guerra e que, depois de adaptar todo o trajecto, invertendo a volta no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, chegávamos ao fim coincidindo com a morte de Kadhafi. Parecia que tudo fora bem programado, e aqui está uma abordagem bastante egoísta de uma guerra civil, mas na altura foi o que nos atravessou a mente.

Eram pessoas comuns, que tinham agarrado nas armas, derrubado o regime e tomado o controlo do país.

O que mais temíamos era a fronteira com o Egipto. Nas semanas anteriores as milícias líbias e as tribos locais tinham-na fechado por causa do tráfico de armas. Quem não gostara do gesto haviam sido os comerciantes e os camionistas, que se tinham envolvido em manifestações, com mortos causados pelos confrontos com a polícia. Esperávamos uma enorme confusão, mas deparámos com o oposto. A fronteira estava vazia e aparentemente calma. Do lado líbio, as faraónicas instalações aduaneiras estavam encerradas. Dois homens e dois rapazinhos controlavam sozinhos todo o processo de entradas, de Kalashnikovao ombro. Queriam por força deixar-nos passar sem mostrar os passaportes – “Vivemos num país livre agora! Podem passar que quem manda agora é o povo, sejam bem vindos!” Perante a nossa insistência carimbaram os vistos num casinhoto onde não havia papéis, nem computadores, absolutamente nada.

Enchemos o depósito com apenas 2.5 euros, pois o litro de gasolina custava nove cêntimos. Após alguns quilómetros demos de caras com a inimaginável hospitalidade líbia, amplificada pelo momento em que viviam e a alegria por verem turistas comuns a chegarem. 

Éramos dos primeiros overlanders a atravessar a nova Líbia. O regime de Kadhafi recebia os viajantes com um «guia oficial», destinado a controlar os seus passos, e estava tão fechado ao turismo que proibiu, a partir de 1986, o ensino do inglês e francês no país. Representávamos, de certa forma, uma das suas conquistas: uma Líbia aberta ao mundo, em contacto com outras culturas.

Pai e filho, a bordo de uma velhinha Renault 4L, era uma visão que os deixava boquiabertos. Quando explicávamos que vínhamos de uma volta a África, ninguém acreditava – por vezes, nem mesmo nós conseguíamos acreditar que chegáramos ali.

O país que eu esperava ser o mais carrancudo e perigoso de toda a viagem revelava-se alegre e festivo, nas suas celebrações de liberdade. Os líbios apitavam-nos, faziam «V» de vitória e abraçavam-nos. As milícias na estrada davam-nos confiança para seguirmos caminho. Diziam-nos que se não saíssemos da estrada principal estaríamos seguros.

Parámos numa aldeia para acampar. Pedimos, num posto de gasolina, para nos trocarem 10 dólares, para comermos. O funcionário deu-nos vinte dinares (cerca de 12 euros) e disse-nos para irmos ao restaurante mais próximo. Recusou, veementemente, os 10 dólares e ainda perguntou se nos podia encher o depósito. No restaurante, não nos deixaram pagar a conta e ainda acabámos a dormir em casa do proprietário, onde falámos durante horas, quase sempre por mímica. Percebemos que ele queria ir para a Europa e aprender inglês. Tinha 33 anos. Quando nascera, Kadhafi já estava no poder há nove.

A caminho de Bengazi, tivemos um furo. «Esse pneu está uma vergonha», disseram-nos na oficina. Ofereceram-nos o primeiro pneu novo de toda a viagem. O último dos quatro pneus comprados por 10 dólares, na Mauritânia, ia para o lixo. Seguramente a Catrela já não passava na inspecção em Portugal com quatro pneus de qualidades diferentes. Para não falar da suspensão com folgas por todos os lados. Desde Angola que nos diziam: «Vai partir!» Sempre que fazia uma curva pensava nessas palavras e agarrava o volante com toda a força.

Em Benghazi, a cidade onde toda a revolução começara, passeámos com um sentimento de segurança inesperado, sempre extasiados com a simpatia do povo líbio. Viam-se despojos de guerra e, por todo o lado, pinturas com a nova bandeira – desde bancos de jardim a fachadas de edifícios inteiras. 

No dia seguinte acampávamos em Sirte, onde Kadhafi nasceu e morreu, ao lado de um posto das milícias. Perguntámos se podíamos montar tenda e um dos militares disse-nos: «Estás a ver aquele carro com a bazucada? Podem ficar ali.» 

No posto da polícia militar, onde nos tínhamos que registar, já na capital líbia, avisaram-nos de que a situação estava altamente degradada, com muitas armas e violência nas ruas, que era proibido sairmos à noite e que deveríamos deixar o carro ali mesmo, em frente ao posto. 

Segundo nos contaram o palácio de Kadhafi, em Tripoli, estava ao abandono e queríamos visitá-lo. No dia seguinte encaminhámo-nos para o enorme complexo de Kadhafi – um monte de ruínas provocadas pelas bombas da NATO, depois saqueadas pelas milícias e, a seguir, destruídas por completo pelos cidadãos, que agora, simbolicamente, colocavam ali o lixo. As casas onde vivia o corpo de polícias e militares do complexo tinham sido invadidas por famílias pobres.

Parámos mesmo em frente aos escombros e conhecemos os vizinhos de Kadhafi. Viviam a poucos metros do ditador, num bairro colado a um dos muros do complexo.

Visitámos a casa do tirano, o sítio onde fazia os famosos discursos, o jardim onde fumava as cigarrilhas Davidoff, os túneis por onde fugiu, as árvores onde enforcava os oposicionistas, bem como a casa do seu filho, destruída, grafitada e com a piscina vazia. Os vizinhos de Kadhafi faziam troça do ditador, imitando-o à beira da piscina.

A Líbia foi das experiências mais marcantes da viagem. Uma das grandes vantagens das viagens por terra é que nos levam a países que de outra forma jamais iríamos. Como a Nigéria, o Congo ou a Líbia de armas em punho a festejar uma revolução que acabara de derrubar o eterno ditador. 

Os líbios pareceram-nos calmos, corajosos e lúcidos naquele momento em que viviam a democracia no seu estado mais puro e ingénuo. 

Estavam a poucos meses das eleições e diziam-nos:

–  Queremos alguém no poder como nós – um cidadão normal e trabalhador. Queremos olhar para o seu curriculum, para o seu passado e, depois, calmamente, decidir. Queremos alguém que não enforque a Líbia, que a deixe respirar e que viva com ela no coração.

Às vezes tento reflectir como se pode atravessar um pais com tantos perigos latentes com a paz de espírito que o fizemos e de facto sentimos. O meu pai transmitiu-me uma teoria que jamais esqueci.

“ O medo mais comum é falso e débil pois é medo de algo que não aconteceu, de uma mera possibilidade. Quando tens uma situação real de perigo esse medo passa num ápice a adrenalina e vais reagir com uma coragem que nem sabias ter. Por isso, por vezes mais vale esperar pelo medo do que pensar nele."

Na verdade o maior medo que tive na travessia da Líbia foi quando o meu pai agarrou do chão uma granada de morteiro por explodir a dizer que o queria levar para pôr na mesa da sala. Medo de explodir na Catrela, e medo de estarmos a ficar loucos. A granada lá ficou com os seus despojos de guerra e nós seguimos caminho.

Carlos Carneiro

Assim que acabou o curso de jornalismo partiu. A vida do Carlos tem sido passada de mochila às costas, em longas viagens pela Índia, Sudeste Asiático, Médio Oriente e América Latina, que atravessou durante um ano. Foi de bicicleta até Dakar com o líder Nomad Jorge Vassallo no projeto ‘Até onde vais com 1000 euros?’. Desta viagem resultou um livro com o mesmo nome e um blog vencedor do prémio Super Blog Awards. Em 2012, partiu para a sua aventura mais emocionante: uma viagem à volta de África, com o pai reformado, a bordo de uma Renault 4L. Fizeram 42 mil quilómetros e percorreram 25 países ao longo de um ano.