Os últimos cortadores de cabeças de Nagaland

Os primeiros relatos que ouvimos em relação aos cortadores de cabeça de Nagaland deixaram-nos suspensos entre a realidade e o mito. Os indianos começaram a falar-nos numa terra desconhecida, onde ainda poucos ousavam entrar.

texto e fotografia: Dânia Rodrigues

 

“No mundo em que nasci, o teu valor enquanto guerreiro, enquanto ser humano, era estabelecido pelo número de cabeças que conseguisses cortar e trazer contigo”, revelou-nos Chopa Wangnao, um senhor de 82 anos, com modos afáveis e olhos sonhadores. “Quem se recusasse a participar nas expedições era considerado um cobarde, um homem sem valor. Nenhuma mulher estaria interessada em casar com uma pessoa do género”.

O cenário é a aldeia de Longwa, no estado de Nagaland, um dos territórios mais remotos e selvagens da nação indiana. Encontramo-nos dentro de uma cabana escuríssima com o telhado de colmo, reunidos à volta da fogueira. Para além dos escassos pertences de Chopa, perfeitamente ordenados e limpos, vemos pendurados nas paredes à nossa volta crânios de vacas e mithuns, uma espécie de bovino de enorme importância na região. A atmosfera é nebulosa, quase solene. Chopa encontra-se envolvido por uma sugestiva nuvem de fumo e vai-nos contando a sua fascinante história, à medida que beberica uma chávena de fortíssimo chá preto.

Os primeiros relatos que ouvimos em relação aos cortadores de cabeça de Nagaland deixaram-nos suspensos entre a realidade e o mito. Os nossos amigos indianos mais aventureiros começaram a falar-nos numa terra desconhecida, onde ainda poucos ousavam entrar. Uma terra onde as pontes eram feitas de raízes de árvore entrelaçadas e onde, nas aldeias, as pessoas falavam por assobios. Onde xamãs veneravam espíritos ancestrais e onde até se encontraria refugiada uma das tribos perdidas de Israel. Uma terra povoada por criaturas fantásticas e forças indomáveis, e por tribos que praticavam o corte de cabeças como rito de iniciação. O nosso fascínio crescia. Uma força quase magnética atraía-nos cada vez mais a esta região, de tal modo que não tivemos alternativa senão partir.

“No mundo em que nasci, o teu valor enquanto guerreiro, enquanto ser humano, era estabelecido pelo número de cabeças que conseguisses cortar e trazer contigo”

É sempre perigoso magicar sobre os destinos futuros. Muitas vezes, a construção etérea projetada pela nossa imaginação gera expectativas que acabam por ser goradas quando confrontamos a realidade. Num mundo em que tudo se está a tornar cada vez mais estereotipado, mais globalizado, ansiávamos pela derradeira aventura. Encontrar algo que ainda fosse verdadeiramente genuíno, autêntico, algo de efetivamente único. E Nagaland não nos desiludiu. A realidade que aqui fomos desvendando acabou por se revelar mais fascinante do que qualquer mito. Mais complexa, mais vibrante do que poderíamos imaginar. Cada pessoa que fomos conhecendo pelo caminho revelava-nos um tesouro de informações, histórias e tradições perdidas que nos expunha cada vez mais o arrebatador mosaico da diversidade humana. E que foi inexoravelmente aumentando a nossa determinação de nos adentrarmos mais no território, rumo ao coração da zona dos cortadores de cabeças, em busca de tão temidos guerreiros.

A estrada de acesso a Longwa é um pesadelo dantesco. Demoramos 11 horas a percorrer os 305 quilómetros que separam Dimapur, uma pequena cidade que parece o faroeste indiano, de Longwa, a aldeia que possui o maior número de cortadores de cabeças ainda vivos. Ao ser sacudida impiedosamente pelos solavancos, enfiada num espaço diminuto, ao som de uma canção épica bollywoodesca, não conseguia deixar de me pasmar com a perícia do nosso condutor, capaz de navegar horas a fio entre sulcos de lama solidificados, com uma concentração inabalável. E qualquer desconforto acabava mitigado pela esplêndida paisagem que se desenrolava perante os nossos olhos. À medida que nos afastávamos dos centros urbanos e começávamos a adentrar-nos na selva, as casas pré-fabricadas com telhados de zinco começaram a ser substituídas por cabanas de adobe com telhados de colmo. Víamos senhoras a carregar troncos gigantes em cestos à volta da cabeça, grupos de caçadores que vagueavam com catanas e espingardas artesanais. Passávamos portões decorados com estranhos símbolos, a recordar-nos que nos encontrávamos em território cada vez mais remoto, mais longe da civilização. E por fim, com as cores intensas do pôr do sol a pincelarem o céu, chegamos finalmente ao nosso destino.

Demorámos 11 horas a chegar a Longwa, a aldeia que possui o maior número de cortadores de cabeças ainda vivos. Víamos grupos de caçadores que vagueavam com catanas e espingardas artesanais. Passávamos portões decorados com estranhos símbolos, a recordar-nos que nos encontrávamos em território cada vez mais remoto, mais longe da civilização.

Longwa é uma pequena aldeia numa zona muito remota do estado de Nagaland, que tem a particularidade de se encontrar dividida ao meio entre dois países: a Índia e o Myanmar. A história da tribo fundadora de Longwa, os Konyak, está profundamente entrelaçada com a história recente do subcontinente indiano. Nos finais do século XIX, os colonizadores britânicos dirigiram os seus esforços em direção ao Nordeste da Índia, a única zona do vasto território que ainda se encontrava fora do seu controlo. Investiram imensos recursos e uma parte considerável do seu exército para subjugar as centenas de tribos da região. Todas foram caindo, uma após a outra. Mas os Konyak, guerreiros excecionais com conhecimento detalhado do território e uma espingarda artesanal inventada autonomamente, conseguiram resistir ao invasor até ao final da Segunda Guerra Mundial. O seu território foi subsequentemente dividido de forma arbitrária entre a Índia e o Myanmar; a aldeia de Longwa encontra-se colocada precisamente sobre a linha fronteiriça, testemunho das tensões inerentes a esta tipologia de sítios.

Vivendo numa zona tão isolada, os Konyak foram uma das últimas tribos a ser convertidas ao cristianismo. Os missionários intensificaram a sua ação no Nordeste da Índia a partir de finais do século XIX, e levaram a cabo uma evangelização particularmente violenta e eficaz. Através da persuasão e da força, os missionários foram demonstrando aos povos indígenas as vantagens de se converteram à nova religião, de se integrarem no império e beneficiarem do acesso à saúde e educação. Tal significaria, porém, renegar todas as práticas pagãs e idolatrias. O corte de cabeças, e todo o universo a este associado, foi gradualmente desaparecendo. Mas Longwa só se converteu ao cristianismo no final dos anos 70 do século passado; assim, vivem ainda mais de duas dezenas de guerreiros que exercitaram esta prática.

Durante décadas, estes antigos guerreiros, outrora respeitados pelo seu enorme prestígio, viveram em negação, tentando esquecer o seu passado. A nova religião categorizava-os como pecadores, pessoas atrozes que matavam por orgulho e capricho, que poderiam ser salvos apenas graças à infinita misericórdia do Criador. Muitos arrependeram-se e envergonharam-se, optando por não revelar aos seus filhos e netos o seu negro passado, nem nada que os relacionasse com o antigo universo pagão. Alguns começaram a acreditar que Deus os tinha punido devido às suas más ações. É o caso de Khamgio, um antigo guerreiro de 87 anos que conhecemos, convencido que o facto de não ter conseguido conceber filhos, e de ser forçado a passar os seus últimos anos numa miséria absoluta, era um castigo divino.

No entanto, os antigos cortadores de cabeça voltaram a tornar-se estrelas. Há poucos anos, a sua história começou a divulgar-se e alguns viajantes destemidos vieram em busca das suas histórias, fascinados por este universo quase macabramente exótico. Os antigos cortadores de cabeças, todos eles com mais de 70 anos, ficaram surpreendidos com a recente atenção de que foram alvo. A maioria responde às perguntas de forma envergonhada, reticente. Poucos compreendem o valor de preservar os últimos vestígios da sua tradição.

Chopa Wangnao revelou-se um caso excecional. Entre todos os antigos guerreiros que conhecemos, era o único que parecia genuinamente interessado em partilhar a sua história, o único que se orgulhava da tradição e parecia perceber o valor de a transmitir. Chopa e a vizinha Ngappong, a última tatuadora dos caçadores de cabeças ainda viva, foram as pessoas que melhor nos ajudaram a reconstruir, de forma fragmentária, o universo em que tão extraordinárias criaturas viveram.

Quando eram jovens, contou-nos Chopa, todos os rapazes eram educados nos morungs, uma espécie de grandes dormitórios onde todos os adolescentes eram iniciados à vida adulta. Aprendiam a cultivar, a caçar, a rezar aos espíritos e a cortar cabeças. Numa época de recursos limitados e uma grande hostilidade entre as tribos e aldeias vizinhas, os guerreiros capazes de cortar cabeças eram considerados os homens de maior prestígio de uma sociedade. Todos os rapazes sonhavam um dia ter a oportunidade de demonstrar o seu valor no campo de batalha, e conseguir trazer uma cabeça até à aldeia. Quando finalmente se encontravam preparados, o xamã fazia uma cerimónia em que analisava os seus sonhos e perguntava aos espíritos se era auspicioso que partissem. Se o resultado fosse positivo, os rapazes, orgulhosos, partiam em expedição.

Recuperar uma cabeça era extremamente complicado, explicou-nos Chopa. Existia uma espécie de código de honra, que impedia recolher cabeças de mulheres, crianças e idosos. E, uma vez que os Konyak acreditavam que o espírito continuava a residir na cabeça, e a proteger aqueles que a possuíssem, as cabeças mais desejadas eram, naturalmente, as dos guerreiros mais prestigiados. Mas os adversários recolhiam rapidamente os corpos caídos no campo de batalha; era necessária imensa perícia e sangue-frio para então colecionar uma cabeça.

Quando regressavam das expedições, os guerreiros eram acolhidos como heróis. As cabeças eram tratadas com a maior reverência e participavam no enorme banquete de celebração. Toda a sociedade Konyak dependia deste ritual. Uma aldeia sem uma ou mais cabeças a protegê-la estava destinada a definhar, a anos terríveis de más colheitas agrícolas e derrotas no campo de batalha. Num contexto tribal onde a sobrevivência da comunidade era mais determinante do que a liberdade do indivíduo, o guerreiro era admirado por arriscar a vida em prol da prosperidade comum. Na cerimónia de celebração, os valorosos guerreiros eram tatuados na cara e no peito; cada traço e cada símbolo obscuro contavam a história das suas incríveis proezas, e testemunhavam o orgulho de um homem que tinha ousado desafiar a morte para salvar o seu grupo de uma ruína certa.

Após grande resistência, os missionários cristãos acabaram por se instalar e ditar o fim desta e todas as outras práticas que formavam o tecido do povo Konyak. A sua visão do mundo acabou por se impor na própria tribo e modificar para sempre a forma como aldeões e forasteiros concebiam o seu passado. Os caçadores de cabeças passaram a ser conhecidos como bárbaros e ignorantes, que matavam por capricho e superstição. Mas estudos mais recentes apresentam estas figuras sob uma nova luz. Numa terra de grande densidade populacional e recursos muito limitados, os caçadores de cabeças eram uma forma de controlo da população, parte fundamental da economia política que acabava por permitir a sobrevivência a todas as tribos da região. Os combates entre as aldeias eram atos esporádicos, com um número limitado de perdas de ambos os lados. A violência tinha um caráter quase ritual: o seu papel era o de manter o equilíbrio, não o de exterminar as restantes populações. Paradoxalmente, os missionários que condenaram a prática do corte de cabeças como um pecado, porque ceifava vidas humanas, eram os mesmos que legitimavam um regime colonial que escravizou e exterminou completamente centenas de tribos em toda a Índia.  

Os Konyak tornaram-se fervorosos batistas e renegaram todas as idolatrias passadas, mas os benefícios da pertença à civilização tardaram a chegar. Os Konyak são hoje uma das únicas 25 tribos da Índia com o estatuto de 'tribo primitiva'. Continuam a ter uma taxa altíssima de mortalidade infantil, acesso precário a cuidados de saúde, sistemas sanitários e eletricidade. A educação é muito limitada e os poucos que têm acesso entram num sistema totalmente inadequado à realidade do estado de Nagaland. Fenómenos como o alcoolismo, a prostituição e a dependência de drogas, praticamente inexistentes há umas décadas atrás, são hoje um grande problema desta sociedade.

Os Konyak vivem agora num limbo entre a tradição e a modernidade, entre o animismo de outros tempos e o cristianismo recente, que provoca os mais intrigantes fenómenos. O rei de Longwa é talvez o maior expoente destas contradições. Desprovido do seu valor como guerreiro, tem apenas duas mulheres (em contraste com o seu pai, que tinha 25, e o seu avô, que tinha 60), e é um dependente de ópio, que consome ao som de músicas cristãs com profundas entoações animistas. O seu reino compreende seis aldeias no lado da Índia e 32 no lado do Myanmar; o seu próprio palácio encontra-se dividido pela linha. Todos os dias, o rei come as suas refeições no Myanmar, na cozinha, e dorme nos seus aposentos do lado indiano. É o símbolo de um povo que se esforça por afirmar o seu valor num mundo globalizado que despreza aquilo que ele representa, que tenta com esforço reconstruir e compreender o orgulho das suas tradições, que luta para encontrar o seu lugar no grande livro da História humana.

Dânia Rodrigues

Antropóloga de formação, viajante por vocação

Filha de pai goês e mãe portuguesa, Dânia habituou-se a percorrer, desde cedo, os quatro cantos do mundo. Viaja desde que se lembra de existir e a paixão pela descoberta de novas culturas, está-lhe no sangue. 

Girou pela Europa, fez voluntariado no Kosovo e na Índia, e estabeleceu-se em Itália, onde concluiu os estudos em Antropologia e Arqueologia. Em 2015, pôs a mochila às costas e partiu para o Oriente. Foi, sem rota nem rumo, e deixou-se encantar pela região. Quer seja em viagens, trabalho ou voluntariado, vai desvendando novos recantos da Ásia e vivendo experiências marcantes, como a reconstrução de escolas no Nepal após o terramoto, ou o ensino em mosteiros budistas no Myanmar. Foi na Tailândia que descobriu e se apaixonou pelo mergulho, o que a levou a fixar-se durante um ano na Austrália para trabalhar como fotógrafa subaquática na Grande Barreira Coralina.

Nada a encanta mais do que vaguear sem programa, deixando o acaso pincelar o seu caminho com encontros e oportunidades. Procura utilizar a antropologia como uma lente para compreender o mundo e os seus fascinantes e contraditórios habitantes, e a viagem como uma ferramenta para se enriquecer e conhecer melhor.