Ao longo da Carretera Austral
Contra o mito da viagem perfeita
Entre a liberdade de seguir sem planos e a coragem de escutar o que vem de dentro.
Relato: Rita Caetano
Edição: Tiago Costa
Parti de Puerto Montt com tudo o que precisava na bicicleta para percorrer os 1247 quilómetros da Carretera Austral até El Chaltén. Levava um track GPS, alguns pontos de abastecimento assinalados e uma vontade imensa de estar sozinha no meio da natureza. Não preparei muito mais. Essa era a intenção: uma viagem com espaço para o improviso, para os silêncios e para me encontrar comigo mesma. Viajar sozinha tem uma leveza especial. Parar quando quero, avançar ao meu ritmo, escolher sem ter de negociar.
Lembro-me de ouvir falar da Carretera Austral pela primeira vez, há três anos. Na altura, tirar um mês inteiro para viajar parecia-me uma realidade distante. Mas o tempo é relativo. Aquilo que durante anos me soou a privilégio inalcançável tornou-se, de repente, numa decisão simples. E foi só ao pedalar que percebi como um mês podia ser tão pouco para tudo o que queria viver.
Viajar sozinha dá-me o empurrão para interagir com o que me rodeia. Falar com pessoas, observar pássaros, reparar em cada tipo de folha na floresta. Mas, por vezes, também traz peso. Um deles era a ideia de acampar sozinha. Já o tinha feito antes, mas nunca com verdadeira confiança. Então fiz um acordo comigo própria: sempre que não me sentisse à vontade num sítio, procuraria outra alternativa, fosse um parque de campismo ou um alojamento qualquer. Só o facto de saber que podia mudar de planos devolveu-me a leveza. Não precisava de provar nada a ninguém.
Hoje parece que cada viagem tem de ser épica. Um feito digno de redes sociais. Como se, sempre que te propões a viajar, só tivesse validade se fosse algo altamente desafiante e único. Mas, para mim, as melhores viagens são as que deixam espaço para respirar. Parar mais tempo, fazer um desvio, ficar simplesmente a contemplar. Foi a simplicidade que me fez avançar. A decisão tornou-se muito mais fácil. Vou e logo se vê.
Nos primeiros dias, tinha o equipamento arrumado de forma aleatória. Era comum ter de procurar em todas as bolsas pelas luvas ou esvaziar um alforge inteiro para encontrar a fita isoladora. Com o tempo, fui afinando esses detalhes e descobrindo a forma mais eficiente de organizar tudo.
Mesmo nos últimos dias, quando tudo já parece funcionar, é importante manter a curiosidade de experimentar outra forma e não ter receio de mudar. A trinta quilómetros do fim da viagem ainda mudei a altura do selim. E isso despertou-me para uma metáfora simples, mas poderosa, sobre esta viagem e sobre a vida. Não me conformar com algo, por mais pequeno que pareça, pode trazer melhorias muito significativas. Quantas coisas continuo a adiar, mesmo quando sei que tenho de as mudar?

Em Puerto Montt, o clima era quente e convidativo a pedalar. Os primeiros dias elevaram imenso a expectativa que tinha para esta rota. A estrada seguia ladeada por montanhas com mais de dois mil metros, que se erguiam sem pausa em direção ao céu, cobertas por floresta luxuriante e glaciares imensos. Sentia-me, uma e outra vez, no lugar mais bonito do mundo, sem conseguir processar tudo o que me rodeava.
No mesmo dia visitei uma reserva de Alerces, subi ao miradouro do vulcão Chaitén e acampei no Parque Nacional Pumalín Douglas Tompkins. Mas todos estes sítios incríveis, a vontade de fazer cada desvio possível e a exigência física da estrada começaram a revelar uma realidade para a qual não estava desperta: a média de quilómetros a que me propus era bastante ambiciosa.
Ainda assim, escolhi manter o plano inicial, consciente do esforço que isso ia significar. Há qualquer coisa nestes desafios mais físicos que continua a atrair-me. Passar muitas horas a fazer uma única atividade transporta-me para um estado quase meditativo, que me traz uma certa clareza para pensar sobre várias questões da vida.
A estrada foi mudando à medida que seguia para sul. O asfalto deu lugar ao rípio, os dias de sol tornaram-se raros e a chuva passou a fazer parte da paisagem. Mantinha o ritmo e a rotina, ajustando-me ao que o caminho pedia. Todas as manhãs punha lentilhas a demolhar para estarem prontas ao final do dia. As refeições eram simples, práticas e calóricas: bolachas Vino, Cerelac, sumo Zuko, puré instantâneo.
Sinto que já escrevi bastante sem falar de um ponto importante desta viagem: o ukulele. Tinha passado os últimos dois anos a aprender guitarra e fazia-me sentido levar um instrumento comigo. A guitarra era difícil de transportar, mas o ukulele encaixava-se bem na bagagem e nos dias. Pequeno, leve, afinava quando queria. Tal como eu. Acompanhou-me nos silêncios, nas paragens pela chuva, nos finais de dia antes de adormecer.

Os últimos trezentos quilómetros da viagem foram os mais difíceis, com dias consecutivos de chuva e frio. A travessia até El Chaltén incluiu dois ferries e uma secção de hike-a-bike, que se revelou o melhor singletrack de sempre, com vista para o Fitz Roy. Atravessar o Lago del Desierto e chegar a El Chaltén pela Ruta 41 foi um final perfeito.
O fim da jornada trouxe-me um vazio inesperado. Nada de êxtase. Com o tempo, percebi que completar a Carretera Austral nunca foi o meu verdadeiro objetivo. O desafio era outro: sair sozinha, com o objectivo de me conhecer melhor. Isso sim, era o que realmente me assustava. Hoje, sinto que estou um passo mais próxima de quem sou. De assumir, com clareza, cada escolha que faço. E, sobretudo, de ouvir a minha própria voz.


Rita Caetano
Profundamente apaixonada pela natureza, fazendo disso um trabalho a tempo inteiro
As caminhadas pela Europa começaram cedo, depois veio o Trekking e a Escalada e pelo meio andou o Triatlo e o BTT. Em comum têm o desafio em espaços naturais, através da exploração de novos lugares e da superação física e mental.
Depois de experienciar viagens em autonomia, como a travessia completa dos Pirenéus e a Tour do Monte Branco, a Rita descobriu que o nosso corpo é capaz de fazer coisas incríveis e que nestes lugares chegamos às mais puras realizações acerca da simplicidade da vida.
Formada em Desporto de Natureza e Turismo Ativo, a rotina da Rita alterna geralmente entre guiar grupos e descobrir novas montanhas na sua carrinha. Um dos seus grandes objetivos de vida é descobrir a forma mais sustentável de ser minimalista para assim contribuir para a preservação da natureza e chegar às coisas que a fazem realmente feliz.