Varanasi: Espelho dourado de luz e sombra

Sentada à borda do Ganges, pés quase na água, quase a tocar o rasto dourado do reflexo do nascer do sol, deixo-me inundar pela paz que se tem insinuado nos últimos dias. Flutuo leve, como a bruma que se vai levantando à medida que o ar aquece.

Como em todos os dias que estive em Varanasi, acordei antes do sol nascer. Caminhei até uma das zonas mais tranquilas dos ghat - os degraus que ladeiam as margens do rio - e aqui me sentei. Ouvem-se apenas os pássaros, algumas vozes esporádicas e o ocasional motor de um barco. Tudo brilha em dourado sol e azul névoa, o Ganges é um espelho. À minha esquerda, apenas um senhor nas abluções matinais. Se olhar em frente, estou só eu e o rio. Afinal, consigo estar sozinha na Índia.

Como é que se explica que esta sensação de paz e tranquilidade aconteça num lugar onde tudo é público? Onde, num mesmo olhar se contempla um rio a brilhar, barcos que deslizam como se sobre mercúrio, búfalos com cornos torcidos, vacas que espreitam a uma esquina, cabras que dormem cobertas por mantas de serapilheira, corpos humanos a arder, crianças a lançar papagaios, sadhus de pernas cruzadas, vendedores de chai a fumegar, gente a tomar banho, gente a dormir, um barbeiro a cortar o cabelo a um cliente sentado na escada, outro a aparar os pelos da barba, adolescentes a jogar cricket, homens a fazer massagens a outros homens, roupa a ser batida contra pedras, saris de mil cores estendidos pelos degraus a secar. Onde num só momento pode cheirar a flores, a fritos, a fumo, a esgoto, a urina, a canela, a masala, a fezes, a caramelo.

Se calhar não se explica. Sente-se. Sente-se esta alegria tranquila, esta gratidão. Sorri-se para dentro e por fora, quase se chora de felicidade.

Varanasi é uma das cidades mais antigas do mundo, e um centro de peregrinação para todos os Hindus. É banhada pelo Ganges, o mais sagrado de todos os rios. É a cidade para onde Shiva veio residir com a deusa Parvati depois de esta o ter conquistado pela sua devoção, nos Himalaias. Deus da destruição e regeneração e um dos deuses supremos do hinduísmo, Shiva compõe junto com Brahma, o deus da criação e Vishnu, o deus da preservação,  a Trimûrti, trindade divina. Segundo a tradição, morrer em Varanasi quebra o ciclo de morte e da reencarnação. Famílias inteiras trazem os seus mortos para ser cremados nas margens do rio, que leva depois as suas cinzas. Há quem se adiante e se mude para Varanasi quando sente a morte perto. Quem tem possibilidades, recolhe em ashrams à espera do fim. Os outros, esperam-no na rua, à mercê das esmolas e dos elementos.

Mas não é só na morte que o Ganges salva. Todos os dias, milhares de pessoas fazem banhos rituais nas suas águas. Quando questionados sobre a poluição do rio, encolhem os ombros.  Para os Hindus, a Ma Ganga (Mãe Ganges) tem cinco direitos fundamentais - daras (vista), paras (medicina),  majjal (banho),  anupana (bebida) e sparsh (toque) - dos quais ninguém abdica. É sagrado, ponto. É só isso que interessa.

Chegar a Varanasi durante a noite, longe dos ghat, é um cenário pós-apocalíptico. O caos do comércio do dia é substituído por um silêncio sepulcral, com filas de gente a dormir pelo chão, debaixo das arcadas dos edifícios, na berma da estrada. O dourado do nascer do sol parece impossível nessa hora cinzenta de pó, ratos e morbilidade. Vale tudo para atingir a salvação.

E se naquela hora mágica da manhã, quase o consigo perceber, não evito um arrepio ao ver um devoto a beber água do rio, enquanto outro se ensaboa, e as piras funerárias ardem à vista. Nas margens dos ghat, o lixo acumula-se na lama. Por vezes, um corpo que não ardeu até ao fim passa a flutuar. E é sabido que os esgotos de Varanasi, e de muitas cidades no longo trajecto do Ganges, são despejados nele sem tratamento.

Segundo a Sankat Mochan Foundation, que monitoriza regularmente os níveis de poluição do rio, a contagem de bactérias coliformes fecais em alguns dos ghat de Varanasi atinge os 71000/100 ml de água. O nível aceitável para uma massa de água, para permitir o banho em segurança é de 500/100ml. Esta informação está disponível e é conhecida, e no entanto isso não parece fazer qualquer diferença no dia a dia de Varanasi. Toda a gente despeja lixo, toda a gente queima os seus mortos, toda a gente se banha no rio.

A Índia está cheia de contradições e, nesta dicotomia sagrado-profano, Varanasi parece o epítomo desse sentimento. Depois desses momentos de paz inexplicável, passo meia hora a recusar ofertas consecutivas de passeios de barco, limpezas de ouvidos, massagens, bençãos, visitas a lojas de saris, colares, pulseiras, postais. Aos verdadeiros sadhus, homens que abdicaram de tudo para se dedicarem ao estudo da espiritualidade, misturam-se homens mascarados de sadhus, dispostos a dispensar conselhos e posar para fotos a troco de dinheiro. O turismo estende os seus braços e acrescenta pontos aos paradoxos, mas o espírito de Varanasi consegue sair (quase) imune. Reconheço as discrepâncias, mas vou além delas. Talvez essa seja uma das lições deste lugar.

Da primeira vez que cá estive, conheci Jhuma. Um amigo tinha-me falado da pousada onde estava e do casal que tomava conta dele todos os dias, e acabámos lá ao fim da tarde. Jhuma e o marido, o Sr. Ashishe receberam-me como velhos amigos e percebi nesse momento porque é que o meu amigo passava horas naquele terraço, de manhã, enquanto o sol nascia, e há tarde, enquanto se punha, só sentado ali.

Iamos dar uma volta, mas acabámos por ficar lá. Jhuma ia e vinha. Trouxe-nos chai enquanto ainda era dia. Sentou-se a conversar, desapareceu outra vez. Já de noite, trouxe-nos jantar. Jhuma alimentava-nos o corpo e o pensamento e as horas passavam sem que as notássemos.

Continuei a visitá-la. Sempre com o mesmo sorriso tranquilo, contou-me como chegou a Varanasi com 25 anos, e como não gostou nada. “It is different. And when you don’t understand you reject. I had to learn.” Sendo Bengali, não falava Hindi, nem Inglês. Primeiro sentiu-se miserável. Depois decidiu-se a entender. E foi aprendendo. Não só a comunicar, mas a viver nesse plano que ela acredita superior. “You do your work, inside and out. Here you learn, there is life, and there is death and there is a line in between. But it is all the same. You can’t be too attached to your past, or thinking too much ahead. You do the line. Here you can see that.”

Kashi, nome pelo qual a cidade também é conhecida, significa “Cidade de Luz”. Jhuma referia-se sempre a ela desta maneira. Dizia que Kashi não está na Terra. Está num plano mais elevado, na transição para a energia dos Deuses, e que por isso eles não saem daqui. E que essa luz reflecte tudo, que em Varanasi nos olhamos a um espelho. Por isso há muita gente que não gosta da cidade. Não gosta da sua própria imagem. Mas que também há muita gente que se encontra. Que antes não se via, e passa a ver.

Uma dessas tardes, enquanto conversávamos gritaram-nos lá de baixo “Boat?”. Jhuma encolheu os ombros, eu sorri e gritei que não. Um passeio de barco ao nascer do sol é uma experiência incontornável. Essa luz sonhadora e redentora  - essa que é de certeza a razão que dá nome à cidade - a iluminá-la de frente, e a perspectiva ao mesmo tempo geral e de pormenores que se consegue do rio há hora em que a vida começa, valem o assédio constante, a todas as horas, de todos os barqueiros - e toda a gente parece ser barqueiro. Podemos irritar-nos ou podemos aceitar e ultrapassar. Rir, até. Eu escolhi a segunda hipótese desde que um rapaz que jogava cricket, no meio de uma jogada, parou para olhar para mim e dizer "boat?", saindo a correr para apanhar a bola quando lhe respondi que não.

Varanasi é também conhecida como uma cidade de comércio há séculos. Os Contos de Jataka, textos budistas milenares referem-se a ela como um lugar onde o negócio corria bem. Como parte de um dos dos 16 reinos Hindus, no séc I A.C., a cidade era um centro activo de trocas comerciais. Os saris de seda aqui tecidos e os objectos em latão são ainda hoje muito procurados devido à sua qualidade (ainda que haja cada vez mais problemas com imitações de fabricação industrial). O turismo veio acrescentar procura e acabou por criar outras oportunidades. O arengar constante dos vendedores nas ruelas e nos ghat torna-se cansativo. Os sadhus em pose para as fotos fazem-nos duvidar da sua sabedoria e renúncia aos bens materiais. E o turista, que noutros lugares se irrita com o olhar constante dos indianos, com a foto que querem tirar connosco a toda hora, que anda à procura de “pechinchas”, vê-se aqui a querer apontar a câmara a rituais sagrados e homens santos, a não conseguir desviar o olhar de piras funerárias e a queixar-se da insistência dos vendedores enquanto compra mais um colar.

Como viajantes somos parte do problema, por muito que nos queiramos destacar dele. Mas podemos tentar minimizar o impacto, mostrando o respeito que gostaríamos que nos mostrassem. Escolhendo que tipo de turismo que queremos potenciar.

Eu, fui escolhendo declinar as ofertas com um não peremptório, mas educado. Escolhi não deixar que esse lado contaminasse tudo o que fui sentindo enquanto simplesmente vagueava ou me sentava a apreciar o momento.  Escolhi não julgar, mas tentar compreender.

Varanasi é vida e morte e tudo o que existe entre as duas. Caos e paz. Sagrado e profano. Amor e ódio. Horror e beleza. Aceitação.

Ficha técnica

Texto Filipa Chatillon
Edição Inês Catarina Pinto
Revisão de Texto Online Marta Macedo
Edição Multimédia Tiago Costa
Fotografia Glória Aguiam e Luís Ferreira