Os Últimos Nómadas

uma jornada pelas montanhas do Quirguistão

Nos últimos anos, muito tem sido escrito, dito, debatido sobre o impacto transformador das novas tecnologias no nosso quotidiano. Muitos pensadores defendem que a facilidade de anular o tempo e a distância faz do sedentarismo algo inútil e até supérfluo. Hoje, trabalhar a partir de um computador numa ilha paradisíaca do Pacífico, no sopé dos Himalaias, num café de uma capital Europeia ou na secretária do escritório é redundante.

O conceito contemporâneo de nómada parece já não se aplicar aos povos recolectores, que dependem dos humores da natureza, ou às tribos, que se veem obrigadas a deslocar periodicamente para satisfazer as suas necessidades básicas. Os nómadas do século XXI são pessoas que justificam o seu estilo de vida itinerante pela genuína curiosidade de explorar o mundo. Muitos abdicam da vivência em sociedade, dando prioridade ao ato - muitas vezes egoísta - de desvendar o desconhecido.   

No entanto, ao contrário do significado original do termo, o “nómada-moderno” leva uma vida confortável, vivendo-a quase como um jogo onde a qualquer altura pode desistir e regressar às comodidades da casa de partida. 

Não renego a minha faceta nómada. Durante meses, explorei regiões tão díspares como a Patagónia ou a ilha de Sumatra. Trabalhei em lugares tão exóticos como o Sri Lanka ou a Guatemala. Encaixo-me numa sociedade que encara o nomadismo como sinónimo de liberdade. Mas será esta apropriação correta? Afinal, o que significa ser nómada no século XXI? 

A curiosidade levou-me às montanhas de Tien Shan, no Quirguistão. Um país erguido segundo as leis da cultura nómada. Um país onde o nomadismo cru, sem adornos, ainda prevalece. Um país de grandes espaços e paisagens rugosas. Um país onde a bandeira nacional tem estampada uma yurt - tenda nómada característica desta região. Viajei para o coração da Ásia Central para descobrir a essência do nomadismo, num ambiente rude, sem romantismos ou floreados.

Cheguei à cordilheira de Tien Shan, entre o Quirguistão e a China, numa tarde de junho. Aqui vive uma das últimas comunidades nómadas da Ásia Central, o povo quirguiz. Conhecidos por dominarem a arte da pastorícia como ninguém, todos os anos as famílias quirguizes migram do sopé das montanhas até aos jailoo - vales de grande altitude -  por onde vagueiam durante os meses de primavera e verão. 

Errantes por natureza, os quirguizes deram início à sua jornada na inóspita Sibéria. Destemidos, atravessaram os planaltos da Mongólia e chegaram a regiões tão distantes como o Afeganistão ou o atual Tibete. Até, finalmente, “assentarem” na região onde se erguem as majestosas Tien Shan – conhecidas entre os locais como Montanhas Celestiais ou Montanhas dos Deuses. 

Durante vários dias, percorri uma parte da mais extensa cordilheira da Ásia Central. Caminhei por uma paisagem intocada, de vales alpinos, florestas de coníferas, lagos de altitude, trespassada por ferozes rios. Em pleno verão, transpus colos ainda nevados, avistei imponentes picos nunca pisados pelo Homem e cruzei-me com os pastores das montanhas, os nómadas que tanto apelavam à minha curiosidade. Os seus dias dividiam-se entre as planícies, onde se encontravam com as suas bestas - muitas vezes uma só família possui rebanhos de cabras, ovelhas e manadas de vacas e cavalos em simultâneo - ora junto aos rios, onde orgulhosamente ergueram os seus acampamentos. 

A impiedosa chuva serviu várias vezes de pretexto para “bater à porta” das yurts – tendas construídas em madeira e cobertas de feltro de lã de ovelha – onde invariavelmente fui recebido com uma reconfortante chávena de chá quente ou uma malga do azedokumiz (bebida tradicional da Ásia Central feita a partir de leite de égua fermentado). Nos dias de tempestade fui convidado a aquecer-me junto da tulga (uma espécie de salamandra presente no interior de todas as yurts) e a partilhar com os pastores da montanha borrego guisado, que íamos trinchando e comendo com as próprias mãos. Mas, para os nómadas das Tien Shan, o nomadismo não é um jogo. É, na verdade, um quotidiano duro. 

Pouco importa se o sol brilha bem alto ou se a tempestade teima em não passar; pouco importa se te sentes doente ou num dia mau, há sempre lenha para cortar, gado para vigiar e quilómetros para calcorrear na procura de novos pastos, entre tantas outras tarefas diárias. Abrigado da chuva, aquecido pelo fogo e pela genuína hospitalidade nómada, não pude deixar de reflectir sobre a essência deste povo, que apesar do desconforto intrínseco à sua atividade mantém com orgulho as suas tradições. 

É certo que hoje o estilo de vida nas Tien Shan é obviamente mais confortável, comparado com a dos primeiros nómadas a chegar à região. As yurts  são mais resistentes  e robustas que outrora. Afinal, a globalização também chegou às grandes montanhas. E, apesar da rede telemóvel ser uma miragem, é comum ouvir rádio nos acampamentos, uma ferramenta bastante útil, sobretudo, para prever os humores meteorológicos. 

Actualmente, a maioria dos quirguizes é semi-nómada. Durante os meses de primavera e verão vivem nos seus acampamentos, movendo-se frequentemente em busca de prados frescos para alimentar o seu gado. No inverno, quando as temperaturas baixam drasticamente, as famílias descem pelos vales das Tien Shan até às pequenas povoações, no sopé da montanha, onde a maioria possui casas para si e para os seus animais. 

Apesar de hoje viverem menos isolados, o quotidiano destas comunidades continua a ser duro e determinado pela necessidade de encontrar comida para si ou para os animais. Em pleno século XXI, assistir a esta migração de gentes e bestas é uma experiência singular, mas também reveladora.

O povo quirguiz mostra-nos cruamente que o nomadismo não é apenas um conceito abstrato sobre liberdade baseado no desejo de viajar e assentar onde mais nos apraz. Ser nómada é um estilo de vida severo, ditado pelos humores da natureza e pelos grilhões das estações do ano. É uma vida onde a sobrevivência está intimamente ligada aos elementos. 

Hoje, consigo ver a poesia, consigo até  perceber o prazer e satisfação que alguém possa retirar desta errância. Intitularmo-nos de “nómadas-modernos” apela a um imaginário de dureza, heroísmo e aventura. Mas, na realidade, estamos a negligenciar o heroísmo daqueles que continuam a perpetuar um estilo de vida milenar, aqueles que - nem sempre por opção - vivem uma vida de sobrevivência. Estamos a desonrar os últimos nómadas. 

Ficha Técnica

Texto Eduardo Madeira
Fotografia Tiago Costa